"[...] c’est la seule trace de notre passage sur terre."

Mais um daqueles textos de e-mail, com um tanto de spoilers. Já avisei.

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Então, agora eu li o texto pra valer. Aquela vez eu te mandei mas nem li e nem tinha lido seu e-mail, porque vi que ia ser meio spoiler.

Acho que a questão é que Batman é um blockbuster, e todo mundo sabe disso. Filme de puro entretenimento, e daí não existem discussões mais sérias sobre ele. Ninguém vai falar, por exemplo, que o Batman simboliza blá blá blá, mas não só ele, como qualquer outro enlatado norte-americano. Ted, por exemplo, no máximo é um retrato de adultos infantilizados, com uma veia cômica saltadíssima e muito engraçado. Esse Intocáveis é um filme sério, e daí as pessoas passam a vê-lo sob outro prisma, como se fosse errado encarar numa boa e prestar atenção, por exemplo, à trilha sonora. Não, você tem que ver o panorama geral da Europa, ver as metáforas e afins. É sério.

O negócio é que Intocáveis é um filme sério, e concordo desde já com o que o cara diz sobre o filme de uma pessoa com deficiência, do "amizade forjada a partir de hostilidade inicial" e afins. O problema é que muita gente se esquece de tantos outros filmes assim, e parece que esse é O filme sobre isso, quando, por exemplo, se tem um O Escafandro e a Borboleta, que é muito mais interessante. Mas é bacana, mesmo, como a parte da deficiência do Philippe nem é abordada, é até meio "esquecida", salvo em situações cômicas (quando o Driss passa o telefone pra ele, por exemplo) ou pela "tensão" do encontro com a moça das cartas, a Eleanore ("E agora? Como ele vai explicar que nunca falou disso e mandou a foto em pé? Oh!"), sendo que isso é simplesmente... pulado pelo filme. Tipo, ela aceitou de boa que em 6 meses ele não tenha contado pra ela, simples assim? Mas esse tipo de atitude é louvável, ponto para o filme, e trabalhar na Disney faz isso com as pessoas, até, porque lá os próprios guests não são lembrados da condição deles, quando numa cadeira de rodas, por exemplo.

Não é que eu não tenha gostado do filme, e nem fiquei com isso de "linha narrativa" na cabeça, mas o fato é que esseS filmeS, de modo geral, são realmente feitos e encaixados pra sair tudo tão redondinho que beira ao absurdo. Você tinha alguma dúvida que o Driss ia se mostrar tão necessário que nenhum outro cuidador ia dar certo, e ele ia voltar, depois de milagrosamente botar o irmão na linha? Aliás, ele convenceu os bad guys da Mercedes preta só com um papo?

Gostei muito mais dos aspectos sobre arte do filme (o embate das músicas no aniversário do Philippe é ótimo, e aquilo ali é Adorno e massificação de arte puro, ele ia ficar de cabelo em pé!), e mesmo sobre a metáfora do imigrante x europeu, fato. É o tipo de filme que deveria fazer com que o monsieur saísse do cinema e refletisse sobre a condição do país, até do continente, sem ser pesado - e isso ele consegue fazer magistralmente -, mas o duro é que fica tanto foco na amizade bonita dos dois que as pessoas nem pensam nisso, e ainda xingam o primeiro mendigo negro pela frente com alguma referência ao imigrante. Meio que como aqui seria um cara em São Paulo ver um filme sobre nordestinos, ficar emocionado e torcer pelo cuidador de Pernambuco, e soltar um "esse baiano" depois, sabe?

Enfim, não sei se te decepciono com isso, e esse e-mail é talvez o post que eu escreveria, mas... eu gostei do filme, de verdade. Não tanto quanto Biutiful, nem de longe, até porque são dois filmes completamente diferentes. Aqui, é construção, edificação, crescimento. Biutiful é o oposto, desconstrução total de alguém, da forma mais trágica possível, que tem um final muito bonito, mas na morte. Não tem "e agora vive feliz com sua esposa", mas isso é normal. Um filme a ser comparado com ele seria justamente o Sete Vidas, talvez.

Quer me matar? Quer chocolate?

"Chegar antes foi tudo o que pude fazer."

“Andar por terras que ninguém andou, chegar em lugares em que o branco nunca chegou, porque não há nenhum lugar que o branco não chegue, chegar antes foi tudo o que pude fazer”. Assim narra Claudio Villas-Bôas, quando resolve tirar os sapatos e abandonar a vida medíocre de um burguês paulista para vestir um par de sandálias velhas, se fantasiar de caboclo goiano e viver a mais real das histórias de aventuras, em plena selva amazônica.

Essa é a premissa de Xingu (2012), o último filme do sempre competente Cao Hamburguer, que falou com todas as letras que o nome do filme pode ter sido um erro, já que... bem, que faz muita gente pensar que é um filme de índio, e por isso mesmo seria chato, ou bobo, ou coisas do tipo. Típico preconceito brasileiro, porque quando sai algo do tipo Dança Com Lobos (1990), aí é bonito, é bom, porque é gringo.

E é um filmaço, que faz um interessantíssimo diálogo entre a ficção e a realidade vivido por atores e personagens, até porque foi baseado no livro A Marcha Para o Oeste, dos autores e personagens da história, os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas. Personagens estes que se aproximam bastante do que o Brasil tem de menos, que são heróis; gente que, na vida real, e sem a truculência de um Capitão Nascimento, conseguiu fazer algo de concreto pelo nosso país, mas de quem sabemos menos do que, por exemplo, heróis revolucionários europeus, ou mesmo assassinos seriais norte-americanos. Nossa boa e velha síndrome de vira-latas, que no máximo vê em Tiradentes um mártir, mas não um herói.

Xingu conta a história de três irmãos, dois mundos e uma missão. A narrativa dos irmãos Villas-Bôas apresenta a saga dos responsáveis pela criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, uma área de mais de 27 mil quilômetros quadrados, inteiramente preservada e constantemente ameaçada. Um luta pela esperança de preservar uma cultura milenar e o direito de existir dentro de suas raízes. Uma façanha impensável que conseguiu burlar os interesses progressistas durante o efêmero governo Jânio Quadros. Se hoje, depois de décadas de democracia, ativistas ainda perdem a vida em nome da luta pela preservação dos índios, é possível imaginar a sagaz persistência que os irmãos tiveram de ter para conseguir de fato criar um Parque Indígena, que existe há mais de 50 anos e mudou o panorama de estudos antropológicos no Brasil.

E, ainda assim, quase ninguém conhece essa história. Como a gente mal conhece a história do Brasil, enquanto manja tanto da grama do vizinho. Cao Hamburguer disse que esse filme tem como "princípio", por assim dizer, ser um ponto de partida, até serve também pra mostrar para muita gente que cinema nacional não é só favela movie, comédia sofrível ou produções globais, mas que tem competência pra fazer um verdadeiro épico com material totalmente nacional.

"This is all a tightrope, you gotta learn to balance."

A profissão de advogado, lato sensu, é uma meio ingrata. Iniciativa privada ou poder público, tanto faz. Todos os dias nos deparamos com aquele momento em que você para, pensa e pondera. Mas, no fim das contas, e de modo geral, claro, sempre tem alguma coisa que vai pesar mais, nem que seja a esmagadora pressão sobre você pra mandar soltar um filho de deputado federal ou o risco do cliente levar sua carteira de casos para outro escritório porque o trabalho não foi feito como deveria - e não importa o quão impossível isso seja. Ou até mesmo errado.

E tem o júri, mas como nesse caso o cidadão é colocado lá sem nenhum lado voluntário, não vou nem entrar no mérito. Fora que tem gente que acha que deve ser legal, até estar lá e ficar horas a fio pra decidir se manda alguém pra cadeia ou não.

É preciso dizer, claro, que a profissão tem um lado absurdamente gratificante, seja por ver que a Justiça foi servida, numa condenação ou numa absolvição, ou também por conseguir ajudar pessoas com boas ideias colocando tudo em prática, fazendo até com que a engrenagem não pare. Sim, dá pra ser advogado e ser uma pessoa boa, é bem fácil.

Mas... quando você trabalha para o poder público, não tem o cliente. Mas tem um risco bastante peculiar: a indiferença. Pessoas tornam-se nomes em papel, e você não sabe se aquele sujeito contra quem você oferece uma denúncia, com a faca nos dentes e a cabeça no índice de condenações, é realmente tudo aquilo, ou como vai ficar a família do sujeito. Claro, quem faz merda tem que pagar por isso, não há dúvidas, mas às vezes... e não precisamos imaginar casos à John Grisham para isso, como Tempo de Matar, em que a simpatia pelo réu é mais do justificada, diante de um caso de estupro tão nojento, e o final não poderia ser outro.

E os "furos" no sistema, com que os advogados privados têm que aprender a trabalhar tão bem, e os advogados públicos, por assim dizer, têm que aprender a contornar, ou adaptar?

Nesse sentido, há filmes que mostram lados interessantes da mesma moeda, e que deveriam ser vistos por quem pensa em fazer Direito. Segue um "Top 5" bastante recente para isso, sem qualquer tipo de ordem motivada.

1. Conduta de Risco (Michael Clayton, 2007) 
Filme do advogado "fixer", que precisa fazer malabarismos para contornar situações, defender interesses, manipular a verdade. É um show de George Clooney, e chega a extremos, mas até aí, os extremos sempre mostram porções ideais ou indesejáveis da realidade. Um filmaço, de verdade, mas muito complicado. Questões de consciência e de ética no talo.

2. Fora de Controle (Changing Lanes, 20022)
Ben Affleck é canastrão, mas aqui o papel cai como uma luva para ele. E Samuel L. Jackson consegue controlar seus motherfucker moments da vida pra mostrar um cara tão desesperado que é comedido. O filme um lado "humanístico", de mudança de vida, mas isso só porque o advogado, coitado, se dá conta da podridão do meio em que trabalha, e a chave para a mudança cai, literalmente, em sua mesa, diante de si.

3. O Poder e a Lei (The Lincoln Lawyer, 2011)
Ok, então todo mundo tem direito ao acesso à Justiça, a um julgamento justo e afins? E quando seu cliente é um estuprador confesso, e você sabe que há buracos no "devido processo legal" que darão aquela forcinha para ele continuar por aí, free as a bird? Advogados de traficantes e de certos políticos também poderiam fazer um filme assim, seria até mais interessante para nossa perspectiva tupiniquim.

4. Código de Conduta (Law Abiding Citizen, 2009)
A situação é tão cruel, tão perturbadora que não dá pra assistir ao filme sem torcer pelo "vilão" do filme, para que tudo vá pelos ares. O problema é que é um filme de ação, e o foco vai do processo legal em si para as cenas de ação e de bombas e de torturas que ele se perde um tanto, sobre o trabalho do promotor e da juíza que são obrigados a fazer acordos e liberar criminosos a ponto de embrulhar o estômago. Isso também acontece com "colarinho branco", e não é menos pior.

5. O Crime do Século (The Crime of the Century, 1996)
Um daqueles filmes pra quem acha que bandido bom é bandido morto verem, porque mostra bem como um promotor de justiça passa de uma conduta investigativa à preparação de uma armadilha para jogar a culpa em alguém, de qualquer maneira. A pressão pública e dos "poderes" é sempre grande, e pode levar a erros monumentais, ainda mais num país que aceita a pena de morte - mas também pode acontecer em casos como a notória Ação Penal nº 470, o Mensalão.